terça-feira, 17 de junho de 2014

Reflexões sobre a Copa do Mundo - Parte 1


 Por que, a priori, não sou contra a Copa no Brasil


A Copa do Mundo começou e, com ela, cresce o eco dos gritos raivosos de “não vai ter copa”. Se em 2007, com a escolha do país para sediar o evento, as críticas foram tímidas, nos protestos de junho de 2013 o coro contra o Mundial ganhou corpo e sensibilizou milhares de brasileiros que se opunham aos gastos com a Copa.

Assim, em meio aos já presentes gritos de “gol”, parte da oposição à Copa permanece, em minha opinião, marcada pela desinformação e pouca reflexão sobre o tema. Entristece-me profundamente perceber que uma parcela considerável da esquerda reproduz de maneira mecânica o argumento de que “é um absurdo gastar dinheiro público em estádios e não em saúde e educação.” É contra essa oposição que escrevo, tentando deixar claro por que não sou, a priori, contra a realização da Copa no Brasil. Veja: isso NÃO significa que concordo com desperdício de dinheiro, superfaturamento, desvios de verbas, licitações fraudulentas, despejo de famílias e repressão a manifestações. Ou seja, não significa que concordo com o modo como a Copa foi organizada nem com quaisquer injustiças ocorridas ao longo da preparação. Quero apenas mostrar por que não vejo como absurdo, por si só, o Brasil sediar o evento.


Para isso, vejo dois possíveis argumentos que questionam a conflito “Copa x saúde e educação”.


1-  A Copa do Mundo como empreendimento econômico

A crítica ao fato do governo brasileiro, em todas as suas instâncias, estar investindo recursos públicos em estádios, em detrimento de setores como saúde e educação, foi o mantra mais repetido dos últimos anos no país. Afinal, existe alguém que é contra investir nessas áreas? No entanto, dificilmente se vê a análise concreta dos números. Ressalto que meu conhecimento em economia é limitado, mas uma rápida busca no google me levou ao comentado infográfico da Folha sobre os gastos do Mundial. Encontrei também o pouco conhecido estudo de impactos socioeconômicos da Copa, feito pela FGV, em parceria com a consultoria Ernst & Young. Segundo a Folha, dos R$25,8 bilhões investidos no evento com obras de infraestrutura que serão utilizadas por toda a população (mobilidade urbana, aeroportos, segurança, etc), R$8,0 bilhões foram gastos na construção de estádios, quase completamente com recursos públicos, e é justamente esse o ponto mais criticado. Enquanto isso, o estudo de impacto mostra que, além de criar empregos, a Copa produzirá R$142 bilhões adicionais para a economia brasileira, número que certamente deve ser visto com criticidade. Porém, além de enriquecer ainda mais os donos de construtoras, empresas aéreas e redes hoteleiras, esse valor representará um arrecadação tributária adicional de R$ 18,13 bilhões aos cofres de municípios, estados e federação.
Assim, diante do montante investido nos estádios e do total da arrecadação, não é preciso ser economista para perceber que, como empreendimento, a Copa poderá trazer resultados positivos, gerando ganhos extras aos cofres públicos. Sim, recursos adicionais que podem ser usados em serviços básicos, tais como saúde e educação. Obviamente, se houvesse uma utilização mais responsável, justa e transparente dos investimentos, os impactos socioeconômicos seriam ainda mais rentáveis. Ainda assim, por mais que a preparação para a Copa tenha sido desrespeitosa com o dinheiro público (e obviamente deve-se protestar contra isso), o evento trará resultados economicamente positivos.

2- A Copa do Mundo como evento cultural brasileiro

            Nos últimos dias a internet se encheu de comentários pseudo-críticos sobre a Copa, dentre os quais se destaca o chavão “pão e circo”. Além de ser uma comparação completamente esdrúxula e anacrônica, essa análise desconsidera o caráter cultural que um evento como a Copa do Mundo possui. Longe de ser um mero instrumento de manipulação e alienação do povo, o futebol é um elemento integrante da cultura brasileira, é lazer e entretenimento. O esporte aproxima as pessoas, proporcionando o contato de diversos povos com diferentes costumes; faz rir, faz chorar, emociona e leva alegria a milhares de pessoas. Assim, mais importante que pensar se a Copa será economicamente rentável é valorizar sua importância cultural. Investir no Mundial não deve significar deixar de investir em serviços básicos. A população brasileira precisa de saúde e educação, bem como também tem direito a lazer, entretenimento e cultura. Portanto, assim como se destinam verbas públicas para o Carnaval, a Virada Cultural, a Bienal do Livro e tantos outros eventos culturais, o Estado deve, sim, utilizar recursos públicos para realização da Copa do Mundo, obviamente que da forma mais democrática e responsável possível, o que infelizmente não vem ocorrendo.

Milhares assistem ao jogo do Brasil no Fan Fest em Copacabana. Seriam todos alienados?

Dito isto, encerro esta reflexão dando início a outra. Como afirmei, dizer que, a priori, não me oponho à realização da Copa no Brasil, não significa que concordo com o modo como ela foi organizada e vem ocorrendo. Pois bem, de fato não concordo. Discordo radicalmente, na verdade, e por esse motivo a alegria que me tomou nos últimos dias surgiu junto de inegável angústia. Para os apaixonados pela bola, como fica a consciência política em tempos de Copa do Mundo? Fica para a segunda parte desta reflexão.

5 comentários:

  1. Mateus,
    Que bom poder conversar sobre o problema "copa", que tanto tem me inquietado nos últimos tempos.
    Acho muito interessante que você tenha se proposto a problematizar as formas pelas quais a crítica à copa do mundo tem sido elaborada. É evidente que a reivindicação de investimentos em saúde e educação pode parecer ingênua e carente do ponto de vista da fundamentação econômica. De fato, o cálculo por você apresentado evidencia uma dimensão indubitavelmente positiva do evento, caso adotemos uma perspectiva puramente econômica.
    Entretanto, preciso discordar.
    Me recordo que Bourdieu, na obra Contrafogos v.1, busca demonstrar o quanto a estatística, a matemática e a economia se constituem como formas científicas de legitimação de políticas neoliberais, em detrimento de reflexões sobre os impactos sociais das mesmas. Bourdieu define algo como uma "economia da felicidade", que não se paute somente em montantes a serem arrecadados, mas também nas formas através das quais serão geridos, aplicados, etc. Seguindo esta análise, acredito que o argumento da arrecadação de 18 bi em tributos não pode ser considerado, em si, como um aspecto positivo da Copa. A alocação e distribuição de recursos públicos no Brasil não tem privilegiado, nos ultimos anos, os setores produtivos fundamentais da sociedade- educação, saúde e produção cultural. O mero aumento da arrecadação não incorre numa distribuição socialmente aceitável, ou, ao menos, no que eu considero aceitável. Ademais, a Copa acionou instâncias públicas e particulares para a construção de um "clima" nacionalista e irrefletido, ou seja, configurou um instrumento ideológico que tende a obscurecer o fato de que as relações políticas e econômicas que viabilizam o evento são elas mesmas responsáveis pela reprodução estrutural da desigualdade social. Quem vai ao estádio, quem xinga a Dilma no conforto de camarotes e assentos confortáveis ? Por outro lado, quem são aqueles cujo direito a manifestação é violado nas ruas, quem sofre com os abusos da polícia ? Acredito que, de maneira perversa, a Copa contribua para uma desmobilização de setores que se mostraram insatisfeitos nas manifestações do ano passado. O nacionalismo e o suporte discursivo ao futebol como paixão nacional que legitima o esquecimento, que legitima o fato de que a Copa é jogada e assistida de camarote pelos setores mais ricos da sociedade, é um instrumento que reforça a manutenção da desigualdade, o qual se vale do futebol. A Copa do Mundo é patrocinada por gigantescos conglomerados cuja mera existência distorce o funcionamento do livre mercado, ainda que adotemos uma perspectiva mais liberal. A realização objetiva do evento exigiu a desapropriação de pessoas, a violação de direitos elementares.

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  3. Ademais, em resposta ao segundo momento do seu texto, não suporto a noção de "pão e circo", Porém, meu descontentamento com esta expressão não reside tanto em sua dimensão "anacrônica", mas em sua dimensão "cínica". Explico: normalmente este termo é empregado por setores conservadores da sociedade para designar a forma pela qual os poderes políticos dominam os setores mais "ignorantes"( leia-se, setores mais pobres) da sociedade, o que não impede, porém, que os emissores deste discurso compactuem, se deliciem e se comprazam com os mesmos pães e com o mesmo circo- talvez com ingredientes mais refinados e num espetáculo visto de camarote. Ou seja, essa história de promover a integração por meio do futebol, ou do futebol como forma de integração, só pode interessar àqueles que não querem integração de fato. Que integração podemos obter com um evento com o qual lucram grandes empresas multinacionais que violam direitos humanos e distorcem toda e qualquer livre concorrência, no qual os ricos vão ao estádio e os pobres sofrem com o transporte público e o trânsito? O mito da integração cultural brasileira pode ser desfeito cotidianamente, mesmo no âmbito do futebol: nenhuma vitória em copa do mundo impediu nem mesmo a mais primitiva violência entre torcidas de clubes distintos, quanto mais a violência de classe ou racial.
    Apontar números pretensamente neutros e levantar mitologias "pós-lusotropicalistas" de harmonia e integração da diferença me parecem artifícios simplistas para justificar o absurdo.
    Abraço, saudades, e felicitações pelo espaço de discussão,
    Palmito

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  4. Obs: não mencionei no corpo do texto, mas minha discordância fundamental reside em que não se pode pensar a copa do mundo como um evento abstrato, vazio de seus agentes e dos interesses econômicos de perpetuação da desigualdade que os movem. E viva o Muchachão!

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    1. E aí, Palmito. Obrigado por participar da conversa.
      Sobre essa parte, acho que ato de desvincular o Mundial de seus agentes e contexto de realização serve unicamente como exercício de reflexão para criticar preconceitos e argumentos do senso-comum. Sem dúvidas, a visão da Copa desconectada de sua realidade é uma abstração, que certamente não deve pautar um posicionamento acerca de um evento tão carregado de contradições. Ao contrário, é justamente o caráter antidemocrático e a organização irresponsável que motiva minhas as sensações divididas, que farão parte da segunda parte desse texto.

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