No dia 1 de abril de 2014, cinquenta anos
terão se passado desde que um golpe militar depôs o presidente João Goulart e
iniciou um regime militar que durou 21 anos. O período foi manchado por
torturas e perseguições a opositores, por censura e autoritarismo. Os meios
artísticos buscaram diversas formas metafóricas de se expressar em um momento
no qual a produção cultural passava por um crivo censor. O ano de 1968 – que marca
as revoltas estudantis iniciadas em Paris e que se espalharam pelo mundo – no Brasil,
foi o ano marcado pelo Ato Institucional nº 5, que fechou o Congresso Nacional
e permitiu ao presidente, que na época era uma capivara que atendia pelo nome
de Costa e Silva, governar por decreto. No ano seguinte, 1969, o cineasta grego
Costa-Gavras, conhecido pelo engajamento político e pelo senso crítico apurado,
lançava sua obra-prima, um filme que possuía um título composto por uma só
letra: Z. Z, o clássico dos thrillers políticos, é um dos filmes mais eloquentes
já feitos contra o autoritarismo. Consegue esse efeito sem discursos apelativos,
mas com um roteiro preciso e com um posicionamento político sincero e coerente.
Não por acaso, Z foi interditado pela
censura brasileira por diversos anos. Pensar nisso pode nos levar a uma
reflexão interessante sobre o papel da arte em tempos de crise.
Os últimos momentos de Z, nos quais Costa Gavras mostra, de
forma fria e direta, o início da ditadura militar na Grécia, ainda me
impressionam. Mais marcante do que eles são as palavras que percorrem a tela ao
final do filme. Desfilam diante do espectador coisas proibidas pela ditadura
grega, sobre a qual as pessoas em geral sabem muito pouco. A ditadura grega
proibiu a sociologia e a filosofia. Proibiu Tolstoi e os Beatles. Proibiu
Rolling Stones e Dostoievski. Pérolas culturais de uma época e de outra.
Disciplinas que instigam o pensamento crítico. Chegaram ao cúmulo de proibir
uma letra do alfabeto. A letra Z. Nessa única letra está todo o simbolismo do
filme, sobre o qual não falarei mais para não estragar o sabor da descoberta
para aqueles que ainda não assistiram ao filme.
Não teria sido possível
filmar uma denúncia desse tipo na Grécia, que vivia um governo autoritário.
Então, Costa Gavras filmou na França, com belos diálogos sendo interpretados
por grandes atores franceses como Yves Montand e Jean-Louis Trintignant. No
Brasil, como já disse, o filme foi proibido.
Costa Gavras dedicou toda sua carreira ao cinema crítico e político. O cineasta grego ainda está em atividade. Seu último filme foi O Capital, lançado ano passado. |
A história segue a investigação do
assassinato de um líder político de esquerda, e
o diretor a conduz com a elegância e a inteligência que andam fazendo
falta ultimamente em thrillers de Hollywood. O promotor incorruptível interpretado
por Trintignant é responsável por momentos de tensão apenas com palavras,
montando uma personagem que surge diante dos olhos do público com um exemplo de
funcionário público honesto e comprometido com os interesses da população. Em
nenhum momento o promotor se rende aos interesses de pessoas que ocupam
posições mais influentes do que a sua, como grupos de políticos e de militares.
E o público é convidado a acompanhar essa luta de forças desiguais, sendo
tratado com um respeito imenso. Costa Gavras parece apostar na inteligência do
público, provocando-o a seguir sua história, suas críticas, seu posicionamento
político e histórico. Esse respeito ao espectador é uma das características
mais importantes desse gênero de cinema que podemos chamar de “filmes políticos”,
de forma um tanto quanto generalizante. A condução inteligente da história e a
exposição crítica da trama política é o que faz esse tipo de filmes –
logicamente podemos estender essas características a outras mídias, como a
literatura e a televisão – serem tão importantes em tempos difíceis. A reflexão
e o pensamento crítico são fundamentais ao se atravessar períodos problemáticos.
Jean-Louis Trintignant aponta para um militar corrupto. |
Acho possível dizer que o Brasil passa
por momentos difíceis. Na época em que Z
foi lançado, nosso país também atravessava momentos de crise. Mesmo não
assistindo ao filme, diversos brasileiros sabiam que ele havia sido censurado,
o que pode estimular reflexões sobre as razões para essa proibição. Brasileiros
que foram ao exterior puderam ver o filme, e refletir de forma ainda mais
intensa sobre esse país que proíbe obras que criticam ditaduras. Então, em
tempos difíceis, reflexões e tramas políticas são bastante interessantes. Não
necessariamente para realizarmos uma reflexão histórica sobre eventos
acontecidos, mas também para entendermos nossa própria realidade. No caso
específico do Brasil, acho que seria mais chocante escancarar a hipocrisia e a
crueldade de nossa sociedade atual do que recuperar eventos políticos passados.
Não quero dizer que não se devam produzir filmes – e livros e músicas – sobre o
regime militar, sobre a Era Vargas ou sobre o que for, mas sim que precisamos
também de filmes – e livros e músicas - de viés político e críticos aos tempos
complicados que atravessamos. É necessário falar sobre uma sociedade surreal
que acha que participar de programas de distribuição de renda do governo
federal é sinônimo de vagabundagem. Ou que afirmam não existir racismo no
Brasil. Ou que se utilizam de termos cretinos como “ditadura gay”, “gayzismo”, “feminazis”
e outras coisas imbecis do gênero.
Para
citar exemplos de filmes que fizeram isso, e não falar apenas do trabalho do
grande Costa Gavras (que fez uma bela carreira, com outras obras políticas como
Estado de Sítio e o polêmico Amén): Todos os Homens do Presidente, de Alan J. Pakulla, conta de forma extraordinária
a pesquisa jornalística que colaborou para o fim do governo de um escroque
chamado Richard Nixon. Sidney Lumet, um dos maiores diretores de todos os
tempos, comentou de forma instigante a busca desenfreada por audiência em uma
rede de televisão, o que leva à produção de sensacionalismo puro e acrítico, em
Rede de Intrigas. Chaplin criticou
Hitler em plena Segunda Guerra Mundial, com seu O Grande Ditador. Stanley Kubrick ridicularizou a Guerra Fria e a
corrida armamentista entre EUA e URSS em Dr.
Fantástico. E há o clássico dos clássicos dos filmes políticos: A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo,
belo relato sobre a luta pela independência da Argélia. Há muitos outros,
apenas citei meus favoritos. E olhem que nem entrei no território da ficção
científica e das distopias, que nos presentearam com maravilhas como 1984, livro de George Orwell, e a série
de jogos Bioshock, uma das melhores
histórias que eu já tive o prazer de conhecer, em qualquer mídia.
Alguns podem se
perguntar se estamos mesmo atravessando tempos difíceis, ou se essa afirmação é
um exagero. Porém, é importante lembrar que vivemos numa época na qual pessoas
buscam reeditar a Marcha com Deus pela Família e pela Liberdade, bradando que
um golpe comunista é iminente no Brasil. Vivemos numa época em que uma pesquisa
constata que 65% da população acha que mulheres que se vestem de maneira
considerada provocante merecem sofrer abusos. Se, ao lermos alguma notícia em
um site, pararmos por alguns momentos para nos atentarmos aos comentários,
encontraremos absurdos inclassificáveis. Pessoas que incitam o ódio e que parecem
se esquecer que, pensando igual ou pensando diferente, vivemos em uma sociedade
e devemos conviver uns com os outros. E não há possibilidade de começar a
resolver os imensos problemas que nossa sociedade possui caso não pensemos de
maneira crítica e consigamos ter uma leitura densa sobre nossa realidade. Caso
continuemos a lançar comentários estúpidos pregando a intolerância e o ódio às
minorias perderemos totalmente a educação e o senso crítico, e estaremos
caminhando para uma sociedade acrítica na qual a maioria da população acha que
mulheres sofrem abusos porque querem, e que uma ditadura militar – recuso-me a
dizer intervenção, por motivos políticos – resolveria problemas como
criminalidade e corrupção. Não resolveria nada, mas sim criaria uma realidade na
qual obras de arte políticas seriam interditadas. Z não seria um filme exibido nesse tipo de sociedade. Então,
vivemos tempos difíceis. Devemos agir para que não se tornem tempos piores. E,
para começar a agir, basta pensar, mas pensar de forma crítica.