Não
me considero uma pessoa muito amante da ordem, muito menos da hierarquia, mas
gosto de fazer listas. Gosto de ordenar coisas que me chamem a atenção, e
discutir essas listas com amigos. Sempre que digo isso me lembro um pouco
daqueles caras da loja de discos do livro do Nick Hornby, Alta Fidelidade (caso haja alguma diferença gritante entre livro e
filme, não me culpem, eu só assisti ao filme). Mas listas são legais, e, de uma
forma ou de outra, acabam por me servir como espelhos de parcelas do meu
pensamento.
Tive
a ideia de fazer uma lista para o blog, envolvendo duas manifestações artísticas
pelas quais eu sou apaixonado: o cinema e a música. Então, organizei uma lista
com as trilhas sonoras mais marcantes da história do cinema, com pequenos
comentários sobre cada um dos filmes (e trilhas). Antes de começar a listagem,
acho importante lembrar de que essa escolha é extremamente pessoal, e deve ser
discutida. Discordem, concordem, me amem e me odeiem. Outro lembrete
fundamental: colocar uma trilha em uma posição superior à outra não significa
que eu a ache melhor, mas sim o fato dessa trilha ser mais marcante na minha
vida, ou simplesmente o outro fato de eu ter me lembrado dela antes das outras.
Vamos,
então, passear pelas grandes trilhas sonoras da história do cinema:
1) A
Missão – Esse é um dos casos em que a música é melhor do que o próprio
filme. Bem melhor. E o filme é bom. A história de missionários cristãos e sua
convivência entre os indígenas, no sul do Brasil, é acompanhada pela trilha
sonora majestosa de Ennio Morricone, provavelmente o maior compositor vivo de
música para o cinema. Alternando entre o intimista e o épico, Morricone
consegue criar uma música que atravessa a beleza do filme, e reivindica para si
um próprio espaço do belo. A trilha transcende o filme de forma espetacular. O Te Deum cantado em guarani é algo
belíssimo, assim como os sons que acompanham a destruição da missão. Mas o que
realmente ecoa para além da tela, que emociona e umedece olhos são as notas
tímidas sopradas por Gabriel, personagem de Jeremy Irons, que evoluem para uma
música grandiosa, a inesquecível “Gabriel’s Oboe”. O intimista encontra o
épico, e uma obra-prima musical nasce.
2) Akira
– Katsuhiro Otomo criou um universo fantástico em seu mangá Akira. Com uma ambientação cyperpunk, e questionamentos filosóficos
sobre política e maturidade, sua obra foi um verdadeiro marco na
ficção-científica. A adaptação para o cinema, comandada pelo próprio Otomo e
lançada em 1988, teve que cortar muito do material original para conseguir uma
montagem final de duas horas. Mesmo com cortes e com uma redução na
complexidade da trama, o visual continuava lá, e a inquietação trazida pela
história também. A direção de arte, responsável por dar vida à cidade de Neo
Tokyo, teve um apoio essencial de Geinoh Yamashirogumi e Tsutomu Ōhashi (que
utiliza o pseudônimo Shoji Yamashiro) na composição da trilha sonora. Fundindo
instrumentos de percussão milenares com as últimas tendências da música
eletrônica, os compositores nos trouxeram uma música de sonoridade única,
repleta de contrastes, expressando exatamente a contradição do mundo onde os
personagens de Akira vivem. As notas
musicais que acompanham Kaneda em sua moto perseguem o espectador por muito
tempo após o filme ter se encerrado. E o coro de vozes infantis utilizado no “Réquiem”
é algo maravilhoso demais para ser descrito.
3) O
Poderoso Chefão – Francis Ford Coppola transformou o filme de gângsteres em
algo épico. Uma história de assassinatos, emboscadas e vinganças ganha o verniz
de uma saga familiar. Momentos intimistas se ligam com momentos grandiosos. A
trilha de Nino Rota tem como desafio passear pelos dois climas da história, e uni-los
quando necessário. Colaborador de Fellini, Rota já havia composto belas trilhas
evocativas, principalmente em A Doce Vida,
Oito e Meio e Amarcord. Havia composto também a trilha ultra-romântica do Romeu e Julieta de Franco Zefirelli. Com
essa bagagem, a união do filme de gângsteres com o épico, da história familiar
com o grandioso é expressa por uma trilha sensacional, que passeia pelo
sinistro e pelo triunfante. A cena em que Michael Corleone, vivido por Al Pacino,
visita a terra natal de seu pai é um exemplo desse sucesso. Tudo fica ainda
melhor no segundo filme da série, que contou com a colaboração do maestro
Carmine Coppola, pai do diretor, na trilha.
4) Taxi
Driver – Taxi Driver é, nada mais
nada menos, do que uma descida ao inferno. Travis Bickle, o personagem de
Robert De Niro, exposto ao trauma do Vietnã e à violência da cidade de Nova
York nos anos 70, mergulha em um pesadelo de sangue e ódio. O público é
convidado a acompanhá-lo em sua perturbadora jornada. Bernard Herrmann,
conhecido por sua colaboração com Alfred Hitchcock, recebeu a missão de musicar
a primeira grande obra-prima de Martin Scorsese. Alternando solos belíssimos de
saxofone com acordes distorcidos e perturbadores, Herrmann evoca a melancolia e
a solidão de Travis Bickle, sem esquecer nunca da sombra que o rodeia, da
sombra da violência que em algum momento deve explodir. Esse foi o último
trabalho do compositor, que faleceu antes do lançamento do filme. Talvez ele
tenha partido deixando como legado seu trabalho mais impactante.
5) Blade
Runner – O compositor de música eletrônica grego Vangelis é mais conhecido
pela trilha sonora do chatíssimo Carruagens
de Fogo (aquela utilizada em toda transmissão de competições de atletismo
na Rede Globo). Porém, seu grande trabalho é sem dúvida o clássico da ficção
científica existencial, Blade Runner.
Da mesma forma que em Akira, o
desafio de Vangelis é compor uma trilha que una o novo com o tradicional. A
base do enredo de Blade Runner são os
filmes noir hollywoodianos. Deckard,
personagem de Harrison Ford, é uma espécie de Humphrey Bogart deslocado no
tempo. Mas, na realidade do filme, humanos colonizaram Marte e replicantes
estão entre nós. E a Coca-Cola ainda existe. A trilha de Vangelis cumpre esses
desafios com louvor, movendo-se entre o nervoso, o eletrizante e o delicado.
Para emoldurar esse conto existencial, essa fábula sobre o sentido da vida, a
escolha de trilha sonora não poderia ter sido feita de maneira melhor.
6) A
Lista de Schindler – É muito difícil passar pelos minutos finais de A Lista de Schindler sem derramar uma
lágrima. A história do industrial alemão que evitou a morte de uma série de
judeus no Holocausto foi levada às telas por Spielberg de uma maneira profundamente
tocante, escorregando poucas vezes para a pieguice habitual dos filmes do
diretor (não tenho nada de muito forte contra essa pieguice, E.T. é um dos meus filmes preferidos). A
trilha do incansável John Willians, premiada com o Oscar daquele ano, segue os
mesmos passos. Extremamente tocante, extremamente bela, mas sempre sóbria, sem
sentimentalismos exagerados. Essa seriedade só torna o filme mais impactante. E
é importante destacar o trabalho do grande solista israelense Itzhak Perlman,
responsável pelos límpidos e maravilhosos solos de violino da trilha.
7) Era
uma Vez no Oeste – Quatro personagens principais. Quatro temas principais.
Sentimentos evocados. Violência e poesia no oeste. Passados relembrados, um
vingador misterioso, de poucas palavras. Assassinos de olhos límpidos,
criminosos simpáticos e uma viúva com um senso de duplicidade bastante elevado.
A marcha para o oeste, a ferrovia e o Oceano Pacífico. Essa aqui é melhor ouvir
do que tentar descrever. Só assim pode-se entender o motivo do grande Ennio Morricone
aparecer três vezes nessa lista (e olhem que eu deixei passar a trilha
emocionante de Cinema Paradiso).
8) O
Senhor dos Anéis – A Terra-Média criada por Peter Jackson é a melhor
ambientação que uma história de fantasia conseguiu ter no cinema. A seriedade
com que o diretor trabalhou esse mundo ficcional criou um senso de realismo que
talvez nunca seja repetido. Nem o próprio Jackson teve sucesso absoluto ao
revisitar a Terra-Média em O Hobbit.
Um trabalho de ambientação tão bem-feito, extraindo o melhor dos livros de J. R.
R. Tolkien, precisava de uma trilha sonora à altura, que ressaltasse o escopo
épico da história. Não contente em realizar um trabalho competente, Howard
Shore redefiniu a música para filmes épicos, da mesma forma que Peter Jackson
estabeleceu um novo parâmetro para a direção de filmes grandiosos. Temas
inesquecíveis, canções adequadas, grandiosidade por todos os quadros de filme.
Dá vontade de pular na tela e passear pela Terra-Média. Destaco apenas uma
curiosidade: em uma trilha tão grandiloquente, o tema que, mais se destaca,
para mim, é o do Condado. Em meio a tanta grandiosidade, entre batalhas para
definir o destino de um mundo, a música que mais me emociona são as belas notas
que retratam a tranquilidade e a beleza interiorana do Condado.
9) Os
Bons Companheiros (Goodfellas) –
Essa aqui nem é uma trilha sonora original, mas sim uma escolha de músicas já
compostas. Prática comum nos filmes de Martin Scorsese, a parceria do diretor
com o músico Robbie Robertson para a escolha das canções a formarem a trilha
sonora, resulta em algo extraordinário nesse clássico moderno. A recuperação de
“Manish Boy”, clássico do blues famoso na interpretação de Muddy Waters, nos traz
uma cena brutalmente agressiva e antológica. “What is Life”, de George
Harrison, serve como moldura a momentos de perseguição, paranoia e carreiras de
cocaína. Mas provavelmente o trecho mais sensacional é o olhar que Robert De
Niro direciona à câmera inquieta de Scorsese, enquanto ouvimos “Sunshine of
your Love”, do Cream. A lente de Scorsese fica estacionada e ninguém fala nada.
Só se escuta a guitarra de Eric Clapton. Mas os olhos de De Niro, e a fumaça de
seu cigarro nos dizem muita coisa. E nos dá saudades de quando o ator fazia
bons filmes.
10) Três
Homens em Conflito (The Good, the bad and the ugly) – O uivo da hiena
marca, de forma indelével, a trilha sonora do grande filme de Sergio Leone. Em
uma parceria histórica com Ennio Morricone, o popularizador dos western spaghetti nos traz uma história
divertida e emocionante, durante a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Como
faria, de forma ainda mais perfeita, em Era
uma Vez no Oeste, Morricone utiliza a música para estabelecer a diferença
de personalidade entre os três personagens principais, que aqui são O Bom (Clint
Eastwood), O Mau (Lee Van Cleef) e O Feio (Eli Wallach). Procurando um tesouro
perdido, em meio às balas dos canhões, os três aventureiros garantem ao público
momentos antológicos, sempre marcados pela música, e pelo uivo da hiena. Um
detalhe do brilhantismo de Morricone merece ser notado: em um filme com
diversos momentos engraçados, moldados por uma música com tons humorísticos, o
compositor consegue um efeito belíssimo ao trabalhar com temas mais sérios e
violentos. Um excelente exemplo disso é a cena da tortura do “feio” Tuco.
Enquanto o personagem é torturado de forma brutal, soldados do exército ianque
tocam música do lado de fora da cabana de tortura. A intenção é fazer com que o
som da música abafe os gritos. Os acordos sofridos sonorizam a violência,
provocando um contraste emocionante. Os gritos são abafados, mas a emoção é
amplificada. Isso torna o filme ainda mais satisfatório, e completo. A música
colabora para isso, mas também tem uma força própria, fazendo com que seja
constantemente retomada pela cultura pop. E, para aqueles que só conhecem a
trilha pela abertura dos shows do Metallica:
assistam ao filme já!
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