terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Pensamento profundo e fértil, ou, como Star Trek pode nos ajudar a refletir filosoficamente



            Star Trek é coisa de nerd. Frase até um tanto clichê essa. Mas, reconheço que, de fato, Star Trek é coisa de nerd. Da mesma forma que Battlestar Gallactica e Dr. Who também são. Eu, não por acaso, sou fã das três séries. Isso faz de mim um nerd? Talvez, e não há problema nenhum com isso.
            Antes de prosseguir com o texto, e chegar ao tema central que vou abordar, devo dizer que, quando menciono Star Trek, me refiro às cinco séries de televisão e aos dez filmes produzidos com a franquia. Não me refiro aos filmes mais recentes, dirigidos por J. J Abrams, um dos diretores menos sérios e mais gananciosos do atual cinema estadunidense. Não me refiro nem ao primeiro – e bom – filme sob a batuta de Abrams, nem ao segundo, que colocou um dos melhores atores do mundo interpretando um dos melhores vilões da ficção científica, mas se ocupou 80 por cento do tempo em jogar uma série de explosões na tela, para distrair o público dos horrendos buracos de roteiro que o filme possui.

            Mas chega de diretores descompromissados com a franquia que comandam. Voltemos no tempo e falemos da série clássica de Star Trek. Minha intenção aqui é ressaltar, de forma sucinta, como alguns episódios desse grande clássico da ficção científica abordaram temas filosóficos, sociológicos e históricos, de forma criativa e agradável, abrindo portas para que o público pudesse explorar esses temas após desligar a televisão. Usarei três episódios como exemplo, dois da série clássica e um da Nova Geração, retomada da franquia produzida nos anos 80.



      Primeiramente, lembro-me aqui de um dos episódios mais bem roteirizados em toda a história da série, A Cidade à Beira da Eternidade (The City on the Edge of Forever), componente da primeira temporada da série original. Esse belíssimo episódio coloca a Enterprise (a nave onde as personagens da série viajam pelo espaço) diante de um portal, que possui vontade própria e capacidade de transportar pessoas para diferentes épocas da história. O Capitão Kirk, acompanhado pelo racional Sr. Spock, atravessa o portal, para resgatar seu amigo Dr. McCoy, que foi parar na Nova York dos anos 30. Ao chegar lá, Spock descobre que a presença dessas figuras do futuro na Terra dos anos 30 poderia alterar a história de nosso planeta para sempre. O enredo do episódio se desenrola de forma exemplar, e, próximo ao final, o Capitão Kirk e o público são apresentados para uma das minhas coisas favoritas em Star Trek: dilemas éticos. Não posso contar exatamente qual será o dilema, já que estragaria a história do episódio para aqueles que não o viram. Só adianto que questões filosóficas e históricas excelentes são apresentadas. Uma pessoa pode mudar a história? O bem de um indivíduo deve ser sacrificado para o benefício da maioria? Somos capazes de sacrificar nossos amores pelo bem comum? Responsabilidade, ética, história e outros temas estão presentes nesse episódio marcante. Reflexões filosóficas interessantes podem partir dela, e espero que elas surjam para a maior parte daqueles que assistirem a esses brilhantes cinquenta minutos de televisão.  



            Agora vamos para a terceira temporada da série clássica, com uma bela reflexão sobre os direitos civis, em A Última Batalha (Let That Be Your Last Battlefield). Essa história alegórica coloca dois alienígenas em conflito, enquanto os tripulantes da Enterprise tentam mediar uma luta de séculos que envolve essas duas espécies. As duas possuem o rosto dividido em dois, sendo que um dos lados da face é preto e o outro branco. O detalhe, e o que gera o conflito, é que uma delas possui o branco do lado direito e o preto do lado esquerdo, enquanto a outra tem a face dividida de maneira oposta. O conflito é racial, e essa foi uma das primeiras abordagens pungentes do racismo na televisão norte-americana. Muitos nem perceberam a alegoria, o que evitou medidas restritivas da NBC, canal que exibia a série. As emissoras de TV possuíam mais controle sobre sua programação, podendo sugerir mudanças drásticas em seus programas. Como Star Trek era ficção científica, os chefões da NBC achavam que era fantasia, e mal se atentavam às alegorias relacionadas à luta pelos direitos civis que ocorria nos Estados Unidos nos anos 60. Nesse episódio que comento agora, me é inesquecível a discussão entre os dois alienígenas, quando o Capitão Kirk afirma que eles são iguais. A resposta categórica, proclamada pela espécie que perseguia a outra (existia uma classe social dominante no planeta de origem dos dois) é assustadora: “Lógico que não somos iguais, o meu lado direito é branco”. Não por acaso, o lado direto da espécie que perseguia a outra era branco. Essa e outros tipos de alegoria permitiram que a série comentasse, em plenos anos 60, sobre o racismo, a Guerra do Vietnã, o perigo nuclear, o aumento populacional, entre outros temas. O próprio Martin Luther King se declarava admirador da série, que exibiu o primeiro beijo entre um homem branco e uma mulher negra na história da televisão.



            Para encerrar essa discussão sobre as reflexões a serem estimuladas por Star Trek, trago o exemplo de um episódio emocionante, chamado Darmok, exibido na quinta temporada de A Nova Geração. Essa história de amizade é uma das reflexões mais incríveis sobre a linguagem que eu já vi. Isolado em um planeta hostil, o Capitão Picard encontra-se com um alienígena cuja língua o diplomático comandante da Enterprise não consegue compreender. Mas a necessidade fala mais alto e, para sobreviver, ele precisa aprender a se comunicar com seu companheiro de exílio. Aos poucos, Picard descobre que a etnia desse alienígena não utiliza uma linguagem literal, mas sim uma linguagem metafórica. Em um grande momento do roteiro, essa linguagem é explicada da seguinte maneira: “Eles falam por metáforas, utilizam imagens. Se eles querem falar sobre amor, não dizem a palavra amor, mas sim uma imagem desse sentimento, como Julieta em seu balcão.” O capitão, aos poucos, consegue se comunicar com seu companheiro. A cena em que os dois, à beira de uma fogueira, trocam histórias das respectivas culturas, é de arrancar lágrimas. O episódio não é simplesmente uma belíssima reflexão sobre a riqueza disso que chamamos de linguagem, mas também sobre as histórias que contamos, sobre a amizade e sobre a tolerância. Para nos entendermos uns aos outros, basta nos esforçarmos, escutarmos com atenção. Essa mensagem é maximizada pelo grande trabalho dos dois atores, e homenagens sejam prestados aqui a Patrick Stewart e Paul Winfield. Quem quiser conferir um momento dessas grandes atuações, confira o vídeo: 



            Espero que tenha conseguido dizer o quanto Star Trek pode ser uma bela fonte de reflexões, e também o quanto essa série foi importante para a minha formação. Até a próxima. Enquanto isso: vida longa e próspera!
 

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