Star
Trek
é coisa de nerd. Frase até um tanto clichê essa. Mas, reconheço que, de fato, Star Trek é coisa de nerd. Da mesma
forma que Battlestar Gallactica e Dr. Who também são. Eu, não por acaso,
sou fã das três séries. Isso faz de mim um nerd? Talvez, e não há problema
nenhum com isso.
Antes
de prosseguir com o texto, e chegar ao tema central que vou abordar, devo dizer
que, quando menciono Star Trek, me
refiro às cinco séries de televisão e aos dez filmes produzidos com a franquia.
Não me refiro aos filmes mais recentes, dirigidos por J. J Abrams, um dos
diretores menos sérios e mais gananciosos do atual cinema estadunidense. Não me
refiro nem ao primeiro – e bom – filme sob a batuta de Abrams, nem ao segundo,
que colocou um dos melhores atores do mundo interpretando um dos melhores
vilões da ficção científica, mas se ocupou 80 por cento do tempo em jogar uma
série de explosões na tela, para distrair o público dos horrendos buracos de
roteiro que o filme possui.
Mas
chega de diretores descompromissados com a franquia que comandam. Voltemos no
tempo e falemos da série clássica de Star Trek. Minha intenção aqui é
ressaltar, de forma sucinta, como alguns episódios desse grande clássico da
ficção científica abordaram temas filosóficos, sociológicos e históricos, de
forma criativa e agradável, abrindo portas para que o público pudesse explorar
esses temas após desligar a televisão. Usarei três episódios como exemplo, dois
da série clássica e um da Nova Geração,
retomada da franquia produzida nos anos 80.
Primeiramente, lembro-me aqui de um dos
episódios mais bem roteirizados em toda a história da série, A Cidade à Beira da Eternidade (The City on the Edge of Forever),
componente da primeira temporada da série original. Esse belíssimo episódio
coloca a Enterprise (a nave onde as personagens da série viajam pelo espaço)
diante de um portal, que possui vontade própria e capacidade de transportar
pessoas para diferentes épocas da história. O Capitão Kirk, acompanhado pelo
racional Sr. Spock, atravessa o portal, para resgatar seu amigo Dr. McCoy, que foi
parar na Nova York dos anos 30. Ao chegar lá, Spock descobre que a presença
dessas figuras do futuro na Terra dos anos 30 poderia alterar a história de nosso
planeta para sempre. O enredo do episódio se desenrola de forma exemplar, e,
próximo ao final, o Capitão Kirk e o público são apresentados para uma das
minhas coisas favoritas em Star Trek:
dilemas éticos. Não posso contar exatamente qual será o dilema, já que
estragaria a história do episódio para aqueles que não o viram. Só adianto que
questões filosóficas e históricas excelentes são apresentadas. Uma pessoa pode
mudar a história? O bem de um indivíduo deve ser sacrificado para o benefício
da maioria? Somos capazes de sacrificar nossos amores pelo bem comum? Responsabilidade,
ética, história e outros temas estão presentes nesse episódio marcante.
Reflexões filosóficas interessantes podem partir dela, e espero que elas surjam
para a maior parte daqueles que assistirem a esses brilhantes cinquenta minutos
de televisão.
Agora
vamos para a terceira temporada da série clássica, com uma bela reflexão sobre
os direitos civis, em A Última Batalha
(Let That Be Your Last Battlefield).
Essa história alegórica coloca dois alienígenas em conflito, enquanto os
tripulantes da Enterprise tentam mediar uma luta de séculos que envolve essas
duas espécies. As duas possuem o rosto dividido em dois, sendo que um dos lados
da face é preto e o outro branco. O detalhe, e o que gera o conflito, é que uma
delas possui o branco do lado direito e o preto do lado esquerdo, enquanto a
outra tem a face dividida de maneira oposta. O conflito é racial, e essa foi
uma das primeiras abordagens pungentes do racismo na televisão norte-americana.
Muitos nem perceberam a alegoria, o que evitou medidas restritivas da NBC,
canal que exibia a série. As emissoras de TV possuíam mais controle sobre sua
programação, podendo sugerir mudanças drásticas em seus programas. Como Star Trek era ficção científica, os
chefões da NBC achavam que era fantasia, e mal se atentavam às alegorias
relacionadas à luta pelos direitos civis que ocorria nos Estados Unidos nos
anos 60. Nesse episódio que comento agora, me é inesquecível a discussão entre
os dois alienígenas, quando o Capitão Kirk afirma que eles são iguais. A resposta
categórica, proclamada pela espécie que perseguia a outra (existia uma classe
social dominante no planeta de origem dos dois) é assustadora: “Lógico que não
somos iguais, o meu lado direito é branco”. Não por acaso, o lado direto da
espécie que perseguia a outra era branco. Essa e outros tipos de alegoria
permitiram que a série comentasse, em plenos anos 60, sobre o racismo, a Guerra
do Vietnã, o perigo nuclear, o aumento populacional, entre outros temas. O próprio
Martin Luther King se declarava admirador da série, que exibiu o primeiro beijo
entre um homem branco e uma mulher negra na história da televisão.
Para
encerrar essa discussão sobre as reflexões a serem estimuladas por Star Trek, trago o exemplo de um
episódio emocionante, chamado Darmok,
exibido na quinta temporada de A Nova
Geração. Essa história de amizade é uma das reflexões mais incríveis sobre
a linguagem que eu já vi. Isolado em um planeta hostil, o Capitão Picard
encontra-se com um alienígena cuja língua o diplomático comandante da
Enterprise não consegue compreender. Mas a necessidade fala mais alto e, para
sobreviver, ele precisa aprender a se comunicar com seu companheiro de exílio.
Aos poucos, Picard descobre que a etnia desse alienígena não utiliza uma
linguagem literal, mas sim uma linguagem metafórica. Em um grande momento do
roteiro, essa linguagem é explicada da seguinte maneira: “Eles falam por
metáforas, utilizam imagens. Se eles querem falar sobre amor, não dizem a palavra
amor, mas sim uma imagem desse sentimento, como Julieta em seu balcão.” O capitão, aos poucos, consegue se
comunicar com seu companheiro. A cena em que os dois, à beira de uma fogueira,
trocam histórias das respectivas culturas, é de arrancar lágrimas. O episódio
não é simplesmente uma belíssima reflexão sobre a riqueza disso que chamamos de
linguagem, mas também sobre as histórias que contamos, sobre a amizade e sobre
a tolerância. Para nos entendermos uns aos outros, basta nos esforçarmos,
escutarmos com atenção. Essa mensagem é maximizada pelo grande trabalho dos
dois atores, e homenagens sejam prestados aqui a Patrick Stewart e Paul
Winfield. Quem quiser conferir um momento dessas grandes atuações, confira o vídeo:
Espero
que tenha conseguido dizer o quanto Star Trek pode ser uma bela fonte de reflexões,
e também o quanto essa série foi importante para a minha formação. Até a
próxima. Enquanto isso: vida longa e próspera!
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