"Porque a crítica se
desmancha em elogios a autores como Borges e Casares, mas trata os fenômenos da
literatura fantástica da atualidade como escritores bem sucedidos e só? Porque
não se escrevem análises mais apuradas do trabalho de Neil Gaiman? Porque só
vemos os nomes desses autores nas listas dos mais vendidos, ou em comentários
tímidos nos jornais, ou em blogs de fãs? Não há uma resposta definitiva, como
não há respostas definitivas para nada, mas posso tentar esboçar uma
explicação."
Um dos filões mais produtivos – e lucrativos
– do mercado editorial contemporâneo são as obras de fantasia. Histórias
situadas em mundos fantásticos, totalmente descolados da nossa realidade, ou
narrativas que misturam nosso mundo com elementos estranhos a ele, dando origem
a uma intersecção de universos. Não só na literatura esse tipo de história
aparece, mas também em outras mídias como os quadrinhos e os games. Já no
cinema, somos inundados por produções que adaptam histórias fantasiosas para as
telas, enquanto há poucas produções originais no gênero. Porém, enquanto obras
fantasiosas dão um lucro absurdo, e atingem uma popularidade estratosférica, é
notável que ainda se sinta falta de um reconhecimento desse tipo de obra pelos
círculos considerados mais cultos da nossa sociedade, principalmente pela
crítica literária.
As perguntas que desejo
abordar aqui, e em parte respondê-las, são as seguintes: existe qualidade
literária nessas obras de fantasia?; e porque a resistência de parte da crítica
e de leitores mais especializados em abraçar um gênero que diverte milhões de
pessoas? Para tornar as coisas mais claras, devo dizer que entendo qualidade
literária tanto no sentido estético quando no sentido do conteúdo. Um bom
livro, que desponte além da mediocridade de seus pares, no meu entender, deve
ser bem escrito, mas também trazer uma densidade na exploração de seus temas,
seja no sentido da história seja no das personagens.
A primeira das
perguntas é de resposta fácil. Sim, existem qualidades literárias evidentes nas
obras de literatura fantástica. Para citar um exemplo recente, temos diversos
livros de Neil Gaiman que provam isso. O inglês Gaiman, conhecido também por
suas obras no mundo dos quadrinhos, possui um dom incrível para a manipulação
da língua e para contar histórias. É capaz de, em poucas frases, tecer
comentários sobre a condição humana entremeados com crítica social, poesia e o
mais puro nonsense. Há também um dos
escritores mais pop do momento, meu gorducho favorito George R. R. Martin,
autor das famigeradas Crônicas de Gelo e
Fogo, fenômeno cultural mundial, principalmente após terem sido adaptadas
pela HBO e dado origem à série Game of
Thrones. Martin é conhecido por matar personagens importantes com uma
facilidade incrível, causando surpresa e revolta em seu leitor. Mas não podemos
nos esquecer da habilidade invejável que o estadunidense possui em criar
ambientes fantásticos, em tecer referências históricas, em organizar seus
livros de forma a enredar o leitor em uma teia de ganchos narrativos de fazer
inveja à melhor das séries de televisão. E suas intrigas palacianas são tão
intricadas que parecem fazer referência às peças históricas de Shakespeare. O
mundo riquíssimo estabelecido por Martin em suas Crônicas levou a revista Time a compará-lo com o papa da literatura
fantástica do século XX, J. R. R. Tolkien, criador da Terra Média, que todos que
me lêem devem saber o que é. Logicamente, isso levou a algumas polêmicas com
fãs radicais de Tolkien. Eu desejo acrescentar um pouco de pimenta a essa
comparação pueril, dizendo que os dois são autores diferentes, que abordam temas
diferentes, sendo que a grande semelhança entre eles é a criação de um mundo
fantástico, baseado na mitologia europeia. A influência de Tolkien sobre Martin
é inegável, mas pensando de forma clara e sensata: o gordinho norte-americano domina
a arte de contar histórias de forma muito mais completa do que Tolkien. E não
direi mais nada sobre isso. Talvez em outra ocasião.
Neil Gaiman e seu estilo punk rocker |
George R. R. Martin e sua bonacheirice sádica |
Mencionei dois autores
contemporâneos, e certamente muitos outros talentosos escritores estão por aí
escrevendo boas obras de fantasia, mas não há espaço para listá-los aqui. Antes
de partir para meu segundo questionamento, acho importante mencionar autores
considerados clássicos que passearam pela literatura fantástica. Fazendo um
apanhado bem rápido, podemos citar Oscar Wilde e seu Retrato de Dorian Gray, que utiliza o fantástico para tecer
metáforas intrigantes sobre o comportamento humano, e Robert Louis Stevenson e
sua obra-prima O Estranho Caso de Dr.
Jekkyl e Mr. Hyde, mais conhecida como O
Médico e o Monstro, que se utiliza do mesmo recurso. Há ainda os livros
clássicos de monstros, como Frankenstein,
de Mary Shelley, e Drácula, de Bram
Stoker. Até mesmo o auto intitulado “historiador dos costumes” da França do
século XIX, Honoré de Balzac, flertou com o fantástico em contos como Melmoth Apaziguado e em seu belo romance
A Pele de Onagro. Goethe, em seu Fausto, usou e abusou de elementos
fantásticos, indo da mitologia para a cultura religiosa, e até Shakespeare, o
mestre dos mestres, foi o autor de duas lindíssimas peças com conteúdo
fantasioso, Sonho de uma Noite de Verão
e A Tempestade. Para completar a
lista, e citar exemplos mais próximos de nós, olhemos para a Argentina, país
vizinho que possui dois dos mais cultuados escritores latino-americanos do
século XX: Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Os dois trabalhavam com
literatura fantástica.
Agora chego à minha
segunda pergunta, e também à conclusão de meu texto. Porque a crítica se desmancha
em elogios a autores como Borges e Casares, mas trata os fenômenos da
literatura fantástica da atualidade como escritores bem sucedidos e só? Porque
não se escrevem análises mais apuradas do trabalho de Neil Gaiman? Porque só
vemos os nomes desses autores nas listas dos mais vendidos, ou em comentários
tímidos nos jornais, ou em blogs de fãs? Não há uma resposta definitiva, como
não há respostas definitivas para nada, mas posso tentar esboçar uma
explicação.
Parte da crítica e do
público mais especializado está saturada de presenciar o lançamento de livros
escritos às pressas, como único objetivo de vender milhares de exemplares e
encher os bolsos do autor e da editora. Boa parte desses livros são de má
qualidade. Isso gera um preconceito imenso com best-sellers, dividindo, de
forma arbitrária, o mercado editorial entre a “literatura séria” e a “literatura
de entretenimento”. Livros com elementos fantásticos normalmente agradam a uma
boa parcela do público, o que os faz vender muito, o que por sua vez liga o
radar do best-seller e aumenta o preconceito contra eles. Dessa forma, boa
parte do pessoal que procura por “literatura séria” encara obras de fantasia
como um novo Harry Potter (não discutirei
as qualidades ou defeitos da série aqui), ou mais um dos mil e quinhentos
livros que o Stephen King publica por semestre. Não importam mais as qualidades
que possam existir em um livro do King, ou em um Harry Potter, o que fica evidente é a mercantilização da
literatura, que dilui conteúdos e temas. Autores não trabalham temáticas mais
densas porque existe uma regra – inventada não se sabe por qual idiota – que diz
que o público quer se divertir, e que livros esquemáticos e escritos de forma
soluçante, como as bombas lançadas por um cidadão chamado Dan Brown, vendem
justamente por isso. Não se questiona que o público pode querer algo mais
inteligente ou profundo, ou até mesmo qual o motivo que o atrai para livros do
Dan Brown. Se a porcaria vende, quer dizer que o público está ávido por
porcarias, e, portanto, as editoras desejam que lhe entreguem porcarias, coisas
superficiais que são lidas e esquecidas cinco minutos depois. As regras do
mercado editorial acabam nivelando tudo por baixo, e colocando no mesmo saco
grandes obras de fantasia e obras medíocres ou ruins. Tudo isso faz com o que a
crítica acabe prestando mais atenção em livros de temática mais realista, ou em
alguma coisa que procure fugir à lógica dessa mediocridade editorial, caindo em
um círculo vicioso de preconceito literário.
Voltando ao exemplo
dado nos parágrafos anteriores, de escritores fantásticos consagrados, como
Borges e Casares: eram escritores que faziam um relativo sucesso, que vendiam
bem, mas que nunca foram submetidos de forma tão brutal às fórmulas do que vende
ou não vende. Se pensarmos somente no retorno financeiro, a liberdade artística
se dissolve, a superficialidade toma conta, e a arte morre. Arte é contestação,
é reflexão, não é somente uma forma de passar o tempo. Literatura é arte,
portanto, literatura deve promover o pensamento, seja por meio de reflexões
profundas ou por meio de boas histórias, que nos instiguem a criatividade e
também os limites da nossa realidade. Desejo muito ver um ambiente literário no
qual não se encare livros com prejulgamentos, mas que também permita uma
liberdade artística total a seus criadores. Seria interessante ver críticos
olhando para o Stephen King e reconhecerem que, mesmo com diversos livros
estapafúrdios repletos de metáforas toscas do amadurecimento, ele possui
momentos ousados e profundos, como nos demonstram algumas das páginas de sua
série gigantesca A Torre Negra. Seria
também sensacional se a J. K. Rowling pudesse se livrar do estigma do Harry
Potter, uma das personagens mais insuportáveis da literatura universal. Seria
bom que Dan Brown aprendesse a escrever. Mas, para isso acontecer, o movimento
deve partir também da parte do público leitor. Os leitores precisam amadurecer,
ler coisas diferentes e desafiadoras, não ficarem presos a somente um gênero,
explorarem diversos mundos literários, passearem de Dostoievski a Tolkien.
Porém, para terem esse tipo de atitude, precisam parar de agir como crianças
choronas pressionando o velhinho bonachão chamado George R. R. Martin, exigindo
que ele complete o sexto livro das Crônicas
o mais rapidamente possível. Esse tipo de atitude corresponde ao de um bando de
consumistas mimados, e não a de pessoas interessadas no trabalho de um
talentoso. Eu prefiro esperar alguns anos a mais e ter um belo livro em mãos.
Afinal, Tolstoi não escreveu Guerra e Paz
em um mês.
Martin manda um recado aos fãs impacientes |
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