terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Devaneios sobre a literatura fantástica

"Porque a crítica se desmancha em elogios a autores como Borges e Casares, mas trata os fenômenos da literatura fantástica da atualidade como escritores bem sucedidos e só? Porque não se escrevem análises mais apuradas do trabalho de Neil Gaiman? Porque só vemos os nomes desses autores nas listas dos mais vendidos, ou em comentários tímidos nos jornais, ou em blogs de fãs? Não há uma resposta definitiva, como não há respostas definitivas para nada, mas posso tentar esboçar uma explicação."



      Um dos filões mais produtivos – e lucrativos – do mercado editorial contemporâneo são as obras de fantasia. Histórias situadas em mundos fantásticos, totalmente descolados da nossa realidade, ou narrativas que misturam nosso mundo com elementos estranhos a ele, dando origem a uma intersecção de universos. Não só na literatura esse tipo de história aparece, mas também em outras mídias como os quadrinhos e os games. Já no cinema, somos inundados por produções que adaptam histórias fantasiosas para as telas, enquanto há poucas produções originais no gênero. Porém, enquanto obras fantasiosas dão um lucro absurdo, e atingem uma popularidade estratosférica, é notável que ainda se sinta falta de um reconhecimento desse tipo de obra pelos círculos considerados mais cultos da nossa sociedade, principalmente pela crítica literária.
As perguntas que desejo abordar aqui, e em parte respondê-las, são as seguintes: existe qualidade literária nessas obras de fantasia?; e porque a resistência de parte da crítica e de leitores mais especializados em abraçar um gênero que diverte milhões de pessoas? Para tornar as coisas mais claras, devo dizer que entendo qualidade literária tanto no sentido estético quando no sentido do conteúdo. Um bom livro, que desponte além da mediocridade de seus pares, no meu entender, deve ser bem escrito, mas também trazer uma densidade na exploração de seus temas, seja no sentido da história seja no das personagens.
A primeira das perguntas é de resposta fácil. Sim, existem qualidades literárias evidentes nas obras de literatura fantástica. Para citar um exemplo recente, temos diversos livros de Neil Gaiman que provam isso. O inglês Gaiman, conhecido também por suas obras no mundo dos quadrinhos, possui um dom incrível para a manipulação da língua e para contar histórias. É capaz de, em poucas frases, tecer comentários sobre a condição humana entremeados com crítica social, poesia e o mais puro nonsense. Há também um dos escritores mais pop do momento, meu gorducho favorito George R. R. Martin, autor das famigeradas Crônicas de Gelo e Fogo, fenômeno cultural mundial, principalmente após terem sido adaptadas pela HBO e dado origem à série Game of Thrones. Martin é conhecido por matar personagens importantes com uma facilidade incrível, causando surpresa e revolta em seu leitor. Mas não podemos nos esquecer da habilidade invejável que o estadunidense possui em criar ambientes fantásticos, em tecer referências históricas, em organizar seus livros de forma a enredar o leitor em uma teia de ganchos narrativos de fazer inveja à melhor das séries de televisão. E suas intrigas palacianas são tão intricadas que parecem fazer referência às peças históricas de Shakespeare. O mundo riquíssimo estabelecido por Martin em suas Crônicas levou a revista Time a compará-lo com o papa da literatura fantástica do século XX, J. R. R. Tolkien, criador da Terra Média, que todos que me lêem devem saber o que é. Logicamente, isso levou a algumas polêmicas com fãs radicais de Tolkien. Eu desejo acrescentar um pouco de pimenta a essa comparação pueril, dizendo que os dois são autores diferentes, que abordam temas diferentes, sendo que a grande semelhança entre eles é a criação de um mundo fantástico, baseado na mitologia europeia. A influência de Tolkien sobre Martin é inegável, mas pensando de forma clara e sensata: o gordinho norte-americano domina a arte de contar histórias de forma muito mais completa do que Tolkien. E não direi mais nada sobre isso. Talvez em outra ocasião.


Neil Gaiman e seu estilo punk rocker


                
George R. R. Martin e sua bonacheirice sádica


Mencionei dois autores contemporâneos, e certamente muitos outros talentosos escritores estão por aí escrevendo boas obras de fantasia, mas não há espaço para listá-los aqui. Antes de partir para meu segundo questionamento, acho importante mencionar autores considerados clássicos que passearam pela literatura fantástica. Fazendo um apanhado bem rápido, podemos citar Oscar Wilde e seu Retrato de Dorian Gray, que utiliza o fantástico para tecer metáforas intrigantes sobre o comportamento humano, e Robert Louis Stevenson e sua obra-prima O Estranho Caso de Dr. Jekkyl e Mr. Hyde, mais conhecida como O Médico e o Monstro, que se utiliza do mesmo recurso. Há ainda os livros clássicos de monstros, como Frankenstein, de Mary Shelley, e Drácula, de Bram Stoker. Até mesmo o auto intitulado “historiador dos costumes” da França do século XIX, Honoré de Balzac, flertou com o fantástico em contos como Melmoth Apaziguado e em seu belo romance A Pele de Onagro. Goethe, em seu Fausto, usou e abusou de elementos fantásticos, indo da mitologia para a cultura religiosa, e até Shakespeare, o mestre dos mestres, foi o autor de duas lindíssimas peças com conteúdo fantasioso, Sonho de uma Noite de Verão e A Tempestade. Para completar a lista, e citar exemplos mais próximos de nós, olhemos para a Argentina, país vizinho que possui dois dos mais cultuados escritores latino-americanos do século XX: Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Os dois trabalhavam com literatura fantástica.
Agora chego à minha segunda pergunta, e também à conclusão de meu texto. Porque a crítica se desmancha em elogios a autores como Borges e Casares, mas trata os fenômenos da literatura fantástica da atualidade como escritores bem sucedidos e só? Porque não se escrevem análises mais apuradas do trabalho de Neil Gaiman? Porque só vemos os nomes desses autores nas listas dos mais vendidos, ou em comentários tímidos nos jornais, ou em blogs de fãs? Não há uma resposta definitiva, como não há respostas definitivas para nada, mas posso tentar esboçar uma explicação.
Parte da crítica e do público mais especializado está saturada de presenciar o lançamento de livros escritos às pressas, como único objetivo de vender milhares de exemplares e encher os bolsos do autor e da editora. Boa parte desses livros são de má qualidade. Isso gera um preconceito imenso com best-sellers, dividindo, de forma arbitrária, o mercado editorial entre a “literatura séria” e a “literatura de entretenimento”. Livros com elementos fantásticos normalmente agradam a uma boa parcela do público, o que os faz vender muito, o que por sua vez liga o radar do best-seller e aumenta o preconceito contra eles. Dessa forma, boa parte do pessoal que procura por “literatura séria” encara obras de fantasia como um novo Harry Potter (não discutirei as qualidades ou defeitos da série aqui), ou mais um dos mil e quinhentos livros que o Stephen King publica por semestre. Não importam mais as qualidades que possam existir em um livro do King, ou em um Harry Potter, o que fica evidente é a mercantilização da literatura, que dilui conteúdos e temas. Autores não trabalham temáticas mais densas porque existe uma regra – inventada não se sabe por qual idiota – que diz que o público quer se divertir, e que livros esquemáticos e escritos de forma soluçante, como as bombas lançadas por um cidadão chamado Dan Brown, vendem justamente por isso. Não se questiona que o público pode querer algo mais inteligente ou profundo, ou até mesmo qual o motivo que o atrai para livros do Dan Brown. Se a porcaria vende, quer dizer que o público está ávido por porcarias, e, portanto, as editoras desejam que lhe entreguem porcarias, coisas superficiais que são lidas e esquecidas cinco minutos depois. As regras do mercado editorial acabam nivelando tudo por baixo, e colocando no mesmo saco grandes obras de fantasia e obras medíocres ou ruins. Tudo isso faz com o que a crítica acabe prestando mais atenção em livros de temática mais realista, ou em alguma coisa que procure fugir à lógica dessa mediocridade editorial, caindo em um círculo vicioso de preconceito literário.
Voltando ao exemplo dado nos parágrafos anteriores, de escritores fantásticos consagrados, como Borges e Casares: eram escritores que faziam um relativo sucesso, que vendiam bem, mas que nunca foram submetidos de forma tão brutal às fórmulas do que vende ou não vende. Se pensarmos somente no retorno financeiro, a liberdade artística se dissolve, a superficialidade toma conta, e a arte morre. Arte é contestação, é reflexão, não é somente uma forma de passar o tempo. Literatura é arte, portanto, literatura deve promover o pensamento, seja por meio de reflexões profundas ou por meio de boas histórias, que nos instiguem a criatividade e também os limites da nossa realidade. Desejo muito ver um ambiente literário no qual não se encare livros com prejulgamentos, mas que também permita uma liberdade artística total a seus criadores. Seria interessante ver críticos olhando para o Stephen King e reconhecerem que, mesmo com diversos livros estapafúrdios repletos de metáforas toscas do amadurecimento, ele possui momentos ousados e profundos, como nos demonstram algumas das páginas de sua série gigantesca A Torre Negra. Seria também sensacional se a J. K. Rowling pudesse se livrar do estigma do Harry Potter, uma das personagens mais insuportáveis da literatura universal. Seria bom que Dan Brown aprendesse a escrever. Mas, para isso acontecer, o movimento deve partir também da parte do público leitor. Os leitores precisam amadurecer, ler coisas diferentes e desafiadoras, não ficarem presos a somente um gênero, explorarem diversos mundos literários, passearem de Dostoievski a Tolkien. Porém, para terem esse tipo de atitude, precisam parar de agir como crianças choronas pressionando o velhinho bonachão chamado George R. R. Martin, exigindo que ele complete o sexto livro das Crônicas o mais rapidamente possível. Esse tipo de atitude corresponde ao de um bando de consumistas mimados, e não a de pessoas interessadas no trabalho de um talentoso. Eu prefiro esperar alguns anos a mais e ter um belo livro em mãos. Afinal, Tolstoi não escreveu Guerra e Paz em um mês.  


Martin manda um recado aos fãs impacientes

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