Metade homem. Metade máquina. 100% ganância dos produtores.
Certa vez ouvi o escritor Raphael
Draccon dizer que um dos grandes méritos do Bruce Lee foi o desenvolvimento de
um kiai – uma exteriorização de energia da prática marcial na forma de grito –
que fosse, ao mesmo tempo imponente e ridículo para quem tentasse reproduzir.
Coisa semelhante acontece com
a obra do cineasta holandês Paul Verhoeven. O diretor é um artista mais
inteligente do que aparenta num primeiro momento, e sua filmografia de ação dos
anos 80 e 90 (cabe até o Tropas Estrelares aí) é recheada de ironia e
sagacidade muito refinadas por trás da estética de filme B. Um mérito de
poucos. Agora, Verhoeven entrou no redemoinho da crise criativa de Hollywood,
que recicla e expande tudo o que vê pela frente em filmes ditados por
produtores que, nem sempre, entendem do que estão fazendo. Primeiro foi a vez
de O Vingador do Futuro ganhar um
remake sofrível, sem qualquer sombra da inteligência do filme original. Foi um
caminho natural até ressuscitarem o velho projeto de trazer às telas novamente
a história do azarado policial Alex Murphy.
Estreou no fim de fevereiro,
no Brasil, o Robocop dirigido pelo
brasileiro José Padilha (Tropa de Elite).
O filme está muito longe de ser a bomba que foi o novo Vingador do Futuro, mas também não consegue se aproximar do Robocop original, de 1987. Porque o cinema
de Paul Verhoeven tem uma pegada tão pessoal, que não é possível reproduzi-lo. O
kiai do Bruce Lee.
Justiça seja feita: Padilha
não tentou replicar o clássico de 87. O novo Robocop toma uma nova direção,
sendo mais condizente, em muitos aspectos, ao futuro de nosso presente. É uma
atualização válida, por isso não incomoda, por exemplo, a agilidade do ciborgue,
mais em sintonia com as novas evoluções robóticas. Entretanto, é inevitável o
exercício de comparação com o material original, num filme que toma a mesma
história de décadas atrás e a coloca numa nova roupagem. O filme de 2014 não
esconde que está se remetendo a um ícone, adorado por tantos. As referências,
como não poderiam faltar, estão aí, nas mesmas frases de efeito e toques da
trilha original. Muitas das referências, entretanto, aparecem bem deslocadas,
perdendo a chance de causar um impacto bacana.
O problema, com todos os
trocadilhos, é que o novo Robocop não tem peso. Isso, ou todas as suspensões
dos veículos de Detroit são magníficas. O filme fica devendo em profundidade,
perdendo a chance de desenvolver as personagens. É visível que houve o esforço
do diretor José Padilha, mas aparentemente os boatos de que o brasileiro estava
sendo podado pelos executivos da MGM são verdadeiros. São visíveis apenas uma
ou outra ousadia num filme que tinha um potencial tremendo para marcar as
pessoas.
Embora não fosse necessário
ir buscar no filme original aspectos mais práticos, que não caberiam aqui, há
ainda o pesado discurso político, o tom crítico. Padilha tenta lançar a
crítica, mas ela vem tão jogada e pluralizada, que acaba se dispersando em prol
da ação pouco inspirada. Jogam-se na tela um pouco de discussão sobre ética (na
figura volúvel do cientista chefe vivido por Gary Oldman), a dominação das
grandes corporações, a manipulação da opinião pública pelos departamentos de
marketing e da mídia. Nada melhor do que caricaturizar o reacionário midiático
ao ponto de expor seu ridículo. Mas o close no Samuel L. Jackson apontando as
obviedades dos absurdos atuais, junto com todo o resto que se propõe a
discutir, acaba perdido num filme que, assim como o protagonista, atira para
todo lado e não sabe o que fazer primeiro.
Há ótimas ideias no roteiro.
A própria abordagem de um Robocop consciente de si, que vai aos poucos sendo
manipulado pela corporação faminta por dinheiro, é muito boa. E a redução de
Murphy à sua porção humana, após a transformação, é assombrosa e cria o único
verdadeiro ponto de empatia pelo personagem no filme. Mas o novo filme deixa
passar todas as oportunidades de criar momentos memoráveis. E abordar assuntos
de potencial gigantesco. Por exemplo, no meio do desfile de informações, passa
despercebida a questão da super vigilância privada. A Omnicorp tem,
literalmente, uma câmera em cada arbusto. Numa atualidade em que uns poucos
grupos detêm a maioria absoluta dos veículos de mídia mundial e Facebook e
Google sabem o que eu estou planejando comer no almoço de amanhã e tentam me
vender coisas o tempo todo, esta vigilância foi um aspecto que me assustou mais
do que qualquer homem dentro da lata.
E não é só isso. No meio da
bagunça de ideias e conceitos jogados, o Robocop tem o próprio desenvolvimento
ofuscado. O protagonista parece não ter tempo ou espaço para evoluir, e suas
mudanças são muito mais impostas do que sentidas. O “Complexo de Frankestein”
sobre o qual Isaac Asimov, um dos pilares da ficção científica escreveu, no
filme chega mais próximo a um novo software instalado do que de uma percepção
da própria condição. Tudo para desembocar num clímax mal explicado e
frustrante.
No fim das contas, o Robocop de 2014 não é um filme ruim. Pelo
contrário, é um filme bacana, com pinceladas de boas ideias e muito potencial
que ficou por ali mesmo. É um filme divertido, que não vai esquentar muito
lugar na cabeça, mas que vale, sim, a pena ser visto. Ele realmente só perde
bastante a força quando colocado à luz do filme original. Mas, reforçando, vale
a pena o ingresso. Eu pagaria muito mais do que um dólar por ele.
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